Na última quinta-feira (09/02/2023), o STF finalizou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.941 proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), julgando-a, por maioria de votos, improcedente.
Ao assim julgar, o STF declarou como constitucionais os dispositivos do Código de Processo Civil, que autorizam o juiz a determinar medidas coercitivas necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial. São as denominadas “medidas coercitivas atípicas”.
O Min. Luiz Fux, então Relator no julgamento, destacou que a decisão se norteou pelo texto do normativo e não pelos casos concretos. Ou seja, na decisão analisou-se a possibilidade de aplicação de medidas coercitivas atípicas trazida pelo Código de Processo Civil, e não foi analisado especificamente quais são as medidas coercitivas permitidas ou proibidas, pois isso deve ser feito caso a caso.
Dentre essas medidas coercitivas, as mais polêmicas e conhecidas são a apreensão ou suspensão da CNH do devedor, bem como a apreensão de seu passaporte. Contudo, há diversas outras medidas que já foram ou ainda podem ser utilizadas para que o juiz assegure o cumprimento da decisão judicial.
A argumentação contrária à aplicação destas medidas, principalmente as que foram arguidas na ADI 5.941, se baseiam na impossibilidade de sacrifício de direitos e garantias fundamentais, previstos na Constituição Federal, a fim de que se faça cumprir uma ordem judicial.
Mas para a maioria dos Ministros do STF, é constitucional que o judiciário, representado pelo juiz, tenha a prerrogativa de fazer valer os seus julgados, por meio de adoção de medidas coercitivas atípicas. Porém, essa aplicação deve ser feita com cautela, com a devida análise do caso concreto, obedecendo aos valores Constitucionais e resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana.
Além disso, deve ser observada a proporcionalidade e a razoabilidade da medida, para aplicação de modo menos gravoso ao devedor, então executado no processo.
Mas o que tudo isso significa na prática? A seguir explicaremos detalhadamente.
Dentre as medidas coercitivas atípicas aplicáveis, as mais polêmicas, utilizadas e comentadas são a suspensão de CNH, apreensão de passaporte e ordem de impedimento para participar de concurso público ou de licitações em caso de empresas.
Por serem atípicas, as medidas coercitivas podem variar a depender da criatividade do credor, das atividades ou interesses do devedor e da situação de cada caso concreto.
Além das acima citadas, são conhecidas como medidas atípicas: o bloqueio de redes sociais, penhora, suspensão ou bloqueio de monetização de canais em redes sociais, cancelamento de cartões de créditos, dentre outras.
A adoção dessas medidas não é novidade, já há algum tempo que vêm sendo aplicadas por juízes em determinados casos, com base no artigo 139, IV do Código de Processo Civil:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(…)
IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;
Para que possamos entender em quais situações essas medidas podem ser aplicadas, primeiro é importante observar em que contexto se iniciou a utilização das medidas atípicas e em que foram fundamentadas.
Casos polêmicos
Nos primeiros processos em que foram utilizadas as medidas atípicas, como por exemplo suspensão de CNH e apreensão de passaporte, foi demonstrado com pesquisas judiciais em base de dados da Receita Federal, Banco Central, Órgãos Nacionais e Estaduais de Trânsito, que o devedor aparentemente não tinha qualquer patrimônio para responder pela dívida.
Contudo, nestas decisões observou-se que o credor conseguiu comprovar que a realidade do devedor era outra, que este ostentava vida social luxuosa, diversa daquela situação econômica demonstrada no processo.
Como exemplo, o credor comprovou que o devedor fazia diversas viagens turísticas internacionais, ou que pilotava carros esportivos em pistas oficiais de corrida dentro e fora do país, práticas as quais não correspondiam com as aparentes situações de impossibilidade de pagamento da dívida.
O deferimento, pelo juiz, da suspensão da CNH ou apreensão de passaporte, serviu como medida coercitiva, para forçar o devedor a quitar a dívida processual, e a partir de então poder voltar a praticar as atividades de seu interesse.
Isso porque, as medidas comuns que tinha em mãos o credor, não foram suficientes para obrigar o devedor a quitar a dívida, embora comprovada a sua farta capacidade financeira.
Outro caso famoso que cabe citar, e foi julgado pelo STJ em 2019, é o Habeas Corpus (HC 478.963 RS), em que figurou como parte o jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho.
A seguir a ementa do julgamento, que descreve os motivos da restrição ao uso do passaporte:
AMBIENTAL. PROCESSO CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. INDENIZAÇÃO POR DANO AMBIENTAL. MEDIDA COERCITIVA ATÍPICA EM EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA. RESTRIÇÃO AO USO DE PASSAPORTE. INJUSTA VIOLAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL DE IR E VIR. NÃO OCORRÊNCIA. DECISÃO ADEQUADAMENTE FUNDAMENTADA. OBSERVÂNCIA DO CONTRADITÓRIO. PONDERAÇÃO DOS VALORES EM COLISÃO. PREPONDERÂNCIA, IN CONCRETO, DO DIREITO FUNDAMENTAL À TUTELA DO MEIO AMBIENTE. DENEGAÇÃO DO HABEAS CORPUS.
(…)
III – A despeito do cabimento do habeas corpus, é preciso aferir, in concreto, se a restrição ao uso do passaporte pelos pacientes foi ilegal ou abusiva.
IV – Os elementos do caso descortinam que os pacientes, pessoas públicas, adotaram, ao longo da fase de conhecimento do processo e também na fase executiva, comportamento desleal e evasivo, embaraçando a tramitação processual e deixando de cumprir provimentos jurisdicionais, em conduta sintomática da ineficiência dos meios ordinários de penhora e expropriação de bens.
V – A decisão que aplicou a restrição aos pacientes contou com fundamentação adequada e analítica. Ademais, observou o contraditório. Ao final do processo ponderativo, demonstrou a necessidade de restrição ao direito de ir e vir dos pacientes em favor da tutela do meio ambiente.
VI – Ordem de habeas corpus denegada.
(STJ – HC: 478963 RS 2018/0302499-2, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 14/05/2019, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/05/2019)
É possível perceber que os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal sempre são citados em julgamentos sobre o tema, conforme será abordado a seguir.
Dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição
Seja no âmbito do recente julgamento da ADI 5.941 pelo STF, ou em demais processos onde há a efetiva aplicação das medidas coercitivas atípicas, a maioria dos argumentos contrários se baseiam na vedação do sacrifício de direitos e garantias fundamentais do indivíduo, previstos constitucionalmente.
Isso porque os pedidos mais realizados são, de fato, a suspensão da CNH, restrição ao uso ou apreensão de passaporte e ordem de impedimento para participar de concurso público ou de licitações.
Na maioria das vezes, alega-se a restrição do direito constitucional de ir e vir, do livre exercício de profissão, da livre locomoção no território nacional, dentre outras garantias fundamentais.
Em contrapartida, segundo o próprio STF (ADI 5.941), determinadas medidas atípicas questionadas têm sim previsão legal em outros dispositivos de Leis, como a suspensão de CNH, por exemplo, que seria possível administrativamente pelo Código de Trânsito. Outro exemplo, a lei de improbidade, que por sua vez, prevê casos de proibição de participação em licitação. Portanto, para o Ministro Relator Luiz Fux, as medidas adotadas pelos magistrados são sim constitucionais.
Vale destacar que com a suspensão da CNH, o direito de ir e vir do indivíduo não é extinto e sim restringido, vez que há a possibilidade de locomoção por outros meios.
Ainda, a restrição do uso ou a apreensão do passaporte, em regra, não fere direito de ir e vir no território nacional, apenas impossibilita eventuais viagens internacionais. Estas, como se verá mais a frente, se forem de extrema necessidade do indivíduo, como questões de saúde ou de negócios, podem ser objeto e argumento para revisão e reforma da decisão judicial.
Dos requisitos
Diante do exposto, ficou clara a determinação contida no julgamento do STF (ADI 5.941), o que já vem sendo aplicado pelos demais Tribunais do País, sobre a necessidade de o juiz observar a proporcionalidade, a razoabilidade e a eficácia da medida tomada no caso concreto.
As medidas atípicas são, portanto, extremas e devem ser utilizadas com cautela, somente em casos que sejam proporcionais, razoáveis e eficazes para o pagamento da dívida. Em regra, só poderão ser utilizadas quando for observado que o devedor tem condições de pagar a dívida e já foram esgotadas todas as tentativas de adimplemento pelos meios padrões.
Em casos em que o juiz verificar que a medida atípica pleiteada pelo credor não atende os requisitos da eficiência, proporcionalidade e razoabilidade, deve haver o indeferimento do pedido, em razão da possibilidade de configurar extremo prejuízo ao devedor, com único intuito de puni-lo, o que é vedado pelo nosso ordenamento jurídico.
A título de exemplo de medida desproporcional, ineficaz e desarrazoada, vemos a suspensão da CNH, quando esta é instrumento imprescindível à atividade profissional do devedor. Neste caso, a apreensão da habilitação para direção de veículos é medida ofensiva à dignidade humana e demais direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.
Não há como admitir a aplicação de uma medida coercitiva atípica, se esta, além de não ajudar no cumprimento da decisão judicial (adimplemento da dívida), impede o indivíduo de exercer seus direitos constitucionalmente previstos, demonstrando ser única e exclusivamente uma punição.
Vale destacar alguns julgados:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO – SUSPENSÃO DE CNH – IMPOSSIBILIDADE.
Tal medida não demonstra utilidade prática para a satisfação do crédito perseguido e afrontam os artigos 8º e 805, ambos do Código de Processo Civil, já que não observa a razoabilidade e a proporcionalidade necessárias para resguardar a dignidade da pessoa do executado e garantir que a execução ocorra pelo meio menos gravoso.
(…)
(TJ-SP – AI: 21403418120198260000 SP 2140341-81.2019.8.26.0000, Relator: Eduardo Siqueira, Data de Julgamento: 20/09/2019, 38ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/05/2020)
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO EXECUTIVA – INDEFERIMENTO DE OFÍCIO A CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS E DE SUSPENSÃO DA CNH.
(…) Em que pese o artigo 139, IV, do CPC, autorizar a determinação de medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para o cumprimento da obrigação, a suspensão do direito de dirigir do devedor não assegura o cumprimento da obrigação ora discutida, e não se revela pertinente.
(TJ-MG – AI: 13020604720228130000, Relator: Des.(a) Saldanha da Fonseca, Data de Julgamento: 17/11/2022, 12ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 21/11/2022)
Importante ressaltar, ainda, que o posicionamento sobre os requisitos acima narrados, foi citado pela Ministra Nancy Andrighi, do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.854.289 – PB (julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020):
“Não se nega, no entanto, que, em certas ocasiões, a adoção de coerção indireta ao pagamento voluntário possa se mostrar desarrazoada ou desproporcional, sendo passível, nessas situações, de configurar medida comparável à punitiva.
A ocorrência dessas situações deve ser, contudo, examinada caso a caso, e não aprioristicamente, por se tratar de hipótese excepcional que foge à regra de legalidade e boa-fé objetiva estabelecida pelo CPC/15.
(…)
Respeitado esse contexto, portanto, o juiz está autorizado a adotar medidas que entenda adequadas, necessárias e razoáveis para efetivar a tutela do direito do credor em face de devedor que, demonstrando possuir patrimônio apto a saldar o débito em cobrança, intente frustrar sem razão o processo executivo.Frise-se, aqui, que a possibilidade do adimplemento – ou seja, a existência de indícios mínimos que sugiram que o executado possui bens aptos a satisfazer a dívida – é premissa que decorre como imperativo lógico, pois não haveria razão apta a justificar a imposição de medidas de pressão na hipótese de restar provada a inexistência de patrimônio hábil a cobrir o débito.”
Conclusão
Portanto, conclui-se que possibilidade de aplicação, pelo juiz, de medida coercitiva atípica prevista no Código de Processo Civil, é constitucional.
Contudo, o tipo de medida e a situação em que ela é aplicada no processo deve ser observada caso a caso, com cautela, para que não se torne uma medida de caráter exclusivamente punitivo, sem trazer eficiência ao processo, e que possa respeitar todos os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.
Campinas, 16 de fevereiro de 2023.
Fontes:
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5458217
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502102&ori=1
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=501997&ori=1