Cobrança de multa por perda de ticket de estacionamento

Em julho de 2022, o Município de São Paulo editou a Lei nº 17.830 de 8 de julho de 2022, que proibia a multa ou aplicação de qualquer penalidade aos consumidores, pela perda ou extravio dos comprovantes de estacionamentos de veículos.

Vale destacar o que dispunha a Lei Municipal nº 17.830/2022, nos seus artigos 1º e 2º:

Art. 1º Os estacionamentos situados no Município de São Paulo ficam proibidos de cobrar multa ou impor qualquer outra penalidade pela perda ou extravio do comprovante de guarda do veículo entregue ao cliente.

 Parágrafo único. Em caso de perda ou extravio de comprovante, a retirada do veículo fica condicionada à apresentação dos documentos de identificação pessoal e do respectivo veículo.

 Art. 2º Os estacionamentos deverão manter registros de entrada e saída dos veículos para que, em caso de perda ou extravio do comprovante, seja possível apurar o tempo de permanência do veículo, o qual servirá de base para a respectiva cobrança, se for o caso.

No mesmo mês, especificamente no dia 15/07/2022, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SHOPPING CENTERS – ABRASCE, ingressou no TJ-SP com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a referida Lei Municipal, que segundo argumentação da associação, impunha obrigações flagrantemente inconstitucionais a seus destinatários.

Na data de ontem, 23/02/2023, foi publicado o Acórdão do TJ-SP, que julgou procedente a ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei Municipal nº 17.830/2022, por invasão à competência privativa da União.

Desta forma, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou a Lei Municipal, em razão desta não observar o princípio federativo da repartição constitucional das competências.

Segundo decidido no mencionado Acórdão do TJ-SP, a Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso I, instituiu a competência privativa da União para disciplinar normas atinentes às matérias de Direito Civil.

 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

Assim, conforme se infere do Acórdão proferido pelo TJ-SP, caberia exclusivamente à União legislar sobre essa matéria (Direito Civil), e não à Prefeitura de São Paulo, já que a Lei Municipal nº 17.830/2022 interfere na exploração econômica da atividade de estacionamento em espaços de propriedade privada.

Explicou-se, por fim, que não há qualquer interesse local a justificar a intervenção municipal para legislar sobre a matéria, pois não há qualquer peculiaridade relacionada ao Município de São Paulo sobre o tema.

Mas isso significa que é permitida a cobrança de multa ou aplicação de penalidade ao consumidor, por perda ou extravio de ticket de estacionamentos?

Entendemos que não.

O ato de estacionar o veículo em um local privado configura um contrato de depósito, o qual, no caso, é oneroso. Essa prática é prevista pelo Código Civil, nos artigos 627 e seguintes do Código Civil:

Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.

 Art. 628. O contrato de depósito é gratuito, exceto se houver convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão.

Parágrafo único. Se o depósito for oneroso e a retribuição do depositário não constar de lei, nem resultar de ajuste, será determinada pelos usos do lugar, e, na falta destes, por arbitramento.

No entanto, esta relação entre o condutor do veículo e o estabelecimento privado, inegavelmente é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, pois se trata de uma relação de consumo, onde o condutor pagará para deixar o seu bem guardado por determinado espaço de tempo, e o estabelecimento receberá o dinheiro em troca da guarda do bem, devendo zelar pela sua integridade.

O ticket do estacionamento nada mais é do que a prova da existência desta relação entre as duas partes, geralmente trazendo em si os dados do veículo, a data e o horário do início da contratação do serviço.

Contudo, é comum que alguns estacionamentos ou até mesmo estabelecimentos que possuem estacionamentos privados (como shopping centers), exijam do consumidor a guarda do ticket, sendo que a perda ou extravio deste significará o dever de pagar uma multa, sob pena da impossibilidade da retirada do veículo em algumas ocasiões.

A aplicação de multa pelos estabelecimentos é considerada, pelo judiciário, como prática abusiva. Segundo entendimento dos Tribunais, exigir do consumidor o pagamento de multa em dinheiro ou qualquer outra penalidade pela perda ou extravio do ticket configura vantagem manifestamente excessiva, vedada pelo art. 39, V do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

(…)

V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;

Segundo entendimento jurisprudencial, é do fornecedor a responsabilidade pelo estacionamento, não devendo o consumidor ser cobrado pela perda do ticket ou até mesmo ser constrangido com a retenção do veículo no local.

É preciso que os fornecedores deste serviço de estacionamento tenham o controle e registro da entrada e saída dos veículos, pois em caso de perda do ticket pelo consumidor, só devem cobrar o tempo em que de fato o veículo ficou estacionado no local.

Para finalizar, vale trazer a este artigo a ementa de um julgado do próprio TJ-SP, do ano de 2021, onde um Shopping Center de Campinas/SP pretendia anular um auto de infração do PROCON do Município, que aplicou penalidade administrativa em razão da indevida cobrança, pelo Shopping Center aos consumidores, de multa decorrente da perda do ticket do estacionamento:

APELAÇÃO CÍVEL. ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO E IMPOSIÇÃO DE MULTA. PROCON.

Pretensão do autor de ver anulada autuação por cobrança de taxa dos consumidores em caso de perda do cartão de estacionamento. Sentença de improcedência na origem. Manutenção. Processo administrativo hígido, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Violação do art. 39, inciso V, da Lei nº 8.078/90. Ocorrência da conduta infratora. Abusividade na conduta caracterizada. Entendimento deste E. Tribunal de Justiça. Auto de infração que não apresenta irregularidade a ser sanada pela via judicial. Sentença de improcedência mantida. Aplicação do disposto no art. 85, § 11, do CPC/15. Recurso não provido.

(TJ-SP – AC: 10095479820208260114 SP 1009547-98.2020.8.26.0114, Relator: Djalma Lofrano Filho, Data de Julgamento: 30/06/2021, 13ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 30/06/2021)

 Do inteiro teor do Acórdão acima citado, destaca-se:

“Diante do exposto, nota-se que a averiguada praticou uma conduta abusiva, tendo em vista que cobrava uma taxa de R$15,00 caso o consumidor perdesse o cartão de estacionamento. Portanto, tal não conduta não merece prosperar, uma vez que o consumidor não pode ser obrigado a pagar um valor fixo a título de penalidade pela perda do cartão e muito menos ser impedido de sair do estabelecimento. Isso porque a responsabilidade pela guarda, integridade do bem e pelo controle da permanência do veículo no local é do fornecedor do serviço, ou seja, da administradora do estacionamento e não do consumidor. Logo, o ônus da perda do cartão não pode ser repassado aos consumidores.

Vale ressaltar, que é direito do consumidor pagar apenas pelo tempo que efetivamente seu carro permaneceu estacionado no local. Até porque a ausência do comprovante não impossibilita a contagem de horas de utilização do serviço, já que o fornecedor possui outros mecanismos aptos a apurar o tempo de permanência.”

Assim, concluímos que a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal de São Paulo, que proibia a cobrança de multa para a perda de ticket de estacionamento, não enseja em permissão desta prática, pois esta imposição é conduta ilegal e abusiva, vedada pelo art. 39, inciso V do Código de Defesa do Consumidor.

Campinas, 24 de fevereiro de 2023.

Fontes:

https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/lei-proibe-multa-perda-ticket-estacionamento-ilegal

https://www.conjur.com.br/dl/cobranca-perda-ticket-estacionamento.pdf

https://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-17830-de-8-de-julho-de-2022/consolidado

https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/1240928217/inteiro-teor-1240928247