A sociedade está sempre buscando meios para aproveitar e administrar melhor o tempo de cada indivíduo, de forma a extrair o melhor rendimento possível dentro de um período cada vez menor, já que o tempo é um recurso escasso, caro e finito.
Mesmo sem que ninguém perceba, o tempo é precificado, seja nas relações de trabalho, prestações de serviços, ou até mesmo em relações de diversão, interação social e descanso.
A valorização do tempo é a razão pela qual a maioria das inovações tecnológicas, que visam otimizar o tempo do seu usuário, têm tido tanto sucesso. Não é preciso mais gastar tempo dentro do mercado, em filas de caixas bancários, ou em enfrentar trânsito para buscar alimentos e refeições, pois a tecnologia possibilitou que essas e diversas outras atividades sejam realizadas no conforto do lar e em menor período.
Assim, é possível afirmar que a otimização do tempo se tornou um grande atrativo no mercado de consumo atual, sendo certo que cada vez mais o tempo se torna limitado e valioso.
Diante deste cenário, nos últimos anos ganhou força a discussão jurídica sobre o tempo do indivíduo e a sua injusta subtração por terceiros, especialmente nas relações de consumo. Assim nasceu a Teoria do Desvio Produtivo.
A Teoria do Desvio Produtivo pressupõe, em resumo, que a injusta perda de tempo pelo consumidor, quando ocasionada por ato ilícito do fornecedor, configura dano indenizável.
É muito comum que algumas empresas fornecedoras de produtos ou serviços submetam seus consumidores a tarefas difíceis e duradouras, para resolver problemas decorrentes da própria falha na prestação do serviço ou de vícios do produto fornecido.
Além de serem exigências exaustivas e demoradas, por vezes sequer são capazes de solucionar o problema do consumidor, que na realidade, perde o seu precioso tempo na tentativa de obter uma satisfatória resolução do seu problema.
Até algum tempo atrás, na grande maioria das vezes, os Tribunais brasileiros enfrentavam essa situação que é penosa para o consumidor como um “mero aborrecimento”, expressão muito utilizada em decisões judiciais. Para essa corrente, o fato de se aborrecer nada mais é do que uma circunstância natural da vida, que as pessoas deveriam se acostumar, lidando com os possíveis dissabores e suportando “pequenos incômodos” causados por dolo ou culpa dos fornecedores de produtos ou serviços.
Apesar desta máxima ainda ser judicialmente relevante, bem como fazer sentido em alguns casos levados à juízo, não deveria ser aplicada em casos onde fica comprovada a desídia e o descaso dos fornecedores para com o consumidor.
A suavidade do poder judiciário ao lidar com a má-prestação de serviços resultava em uma economia às empresas, que alocam os valores de seus rendimentos para outras áreas que não o atendimento ao consumidor e a resolução de demandas.
Contudo, desde 2017 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem adotando, expressamente, a teoria do desvio produtivo, para condenar fornecedores à indenizações, em decorrência de atos ilícitos cometidos em face de consumidores que comprovem o tempo perdido, seja para tentativa frustrada de sanar vícios dos produtos ou em decorrência da falha na prestação dos serviços.
Em 12/9/2017, no julgamento colegiado do REsp 1.634.851/RJ, a 3ª Turma do STJ, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi citada expressamente a teoria pela primeira vez:
“A começar pela tentativa – por vezes frustrada – de localizar a assistência técnica próxima de sua residência ou local de trabalho ou até mesmo de onde adquiriu o produto; e ainda o esforço de agendar uma “visita” da autorizada – tarefa que, como é de conhecimento geral, tem frequentemente exigido bastante tempo do consumidor, que se vê obrigado a aguardar o atendimento no período da manhã ou da tarde, quando não por todo o horário comercial. Aliás, já há quem defenda, nessas hipóteses, a responsabilidade civil pela perda injusta e intolerável do tempo útil: Marcos Dessaune ( Desvio Produtivo do Consumidor – O Prejuízo do Tempo Desperdiçado . São Paulo: RT, 2011, p. 47-48); Pablo Stolze ( Responsabilidade civil pela perda do tempo . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3540, 11 mar. 2013. Disponível em: . Acesso em: 3 mar. 2017); Vitor Vilela Guglinski ( Danos morais pela perda do tempo útil: uma nova modalidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3237, 12 maio 2012. Disponível em: . Acesso em: 3 mar. 2017).
(…)
Assim, não é razoável que, à frustração do consumidor de adquirir o bem com vício, se acrescente o desgaste para tentar resolver o problema ao qual ele não deu causa, o que, por certo, pode ser evitado – ou, ao menos, atenuado – se o próprio comerciante participar ativamente do processo de reparo, intermediando a relação entre consumidor e fabricante, inclusive porque, juntamente com este, tem o dever legal de garantir a adequação do produto oferecido ao consumo.”
A Teoria ganhou repercussão também a partir de outros julgados do STJ, como por exemplo: AREsp 1.132.385/SP publicado em 03/10/2017; AREsp 1.260.458/SP, publicado em 25/04/2018 e; AREsp 1.241.259/SP, publicado em 27/03/2018. Neles foi expressamente mencionada a teoria do dano por desvio produtivo do consumidor para acatar pedidos de indenização por dano moral.
No caso do AREsp 1.260.458/SP, exemplifica-se o dano em decorrência da insistência do consumidor, por três anos, em tentar resolver com instituição bancária uma cobrança ilegal de encargos, que foi infrutífera por comprovada falha da empresa. Entendeu-se que o tempo gasto pelo consumidor poderia ter sido alocado para a realização de outras atividades que foram inviabilizadas por conta da má conduta do fornecedor.
Noutro caso (AREsp 1.241.259/SP) a condenação em danos morais da fornecedora se deu por, entre outros motivos, ter demorado exageradamente na reparação dos vícios de um veículo 0 km (zero quilômetro) adquirido que, assim que saiu da concessionária, apresentou problemas não sanados nem antes e nem depois do prazo de 30 (trinta) dias determinado pelo Código de Defesa do Consumidor.
Em acórdão ainda mais recente (REsp 1.929.288/TO, publicado em 24/02/2022), a 3ª Turma do STJ, invocando a teoria do desvio produtivo, manteve condenação de dano moral coletivo no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) por banco réu em virtude da “reiterada existência de caixas eletrônicos inoperantes, sobretudo por falta de numerário, e pelo consequente excesso de espera em filas por tempo superior ao estabelecido em legislação municipal”.
Há que se destacar, porém, que a teoria do desvio produtivo se aplica somente dentro das relações de consumo, que são aquelas onde há uma desigualdade e vulnerabilidade entre as partes (fornecedor e consumidor).
Sobre essa aplicação, no recente julgamento do REsp 2017194 SP (publicado em 27/10/2022), a Ministra Nancy Andrighi esclareceu que a teoria do desvio produtivo tem lugar nas relações de consumo, em razão da desigualdade e da vulnerabilidade entre as partes, não podendo, dessa forma, ser aplicada nas relações jurídicas regidas exclusivamente pelo direito civil.
“Para os seus partidários, a referida teoria seria aplicável sempre que o fornecedor buscar se eximir da sua responsabilidade de sanar os infortúnios criados aos consumidores de forma voluntária, tempestiva e efetiva, levando a parte vulnerável da relação a desperdiçar o seu tempo vital e a desviar de suas atividades existenciais para solucionar o problema que lhe foi imposto”
Por fim, destaca-se que a adoção desta teoria pelo poder judiciário foi extremamente benéfica a todos os consumidores, pois as empresas fornecedoras de produtos ou serviços investiram e vem investindo bastante para melhoria e eficiência no atendimento ao consumidor, seja pelo SAC, seja pela criação de novas plataformas para atendimento (no site, redes sociais e em aplicativos de mensagens), ou ainda automatização de serviços, como as instituições financeiras.
Isso permite que o Direito crie incentivos para um comportamento socialmente eficiente dos causadores de danos, desestimulando práticas prejudiciais.
Campinas, 10 de fevereiro de 2023.
Fontes:
https://www.conjur.com.br/dl/caixas-desabastecidos-filas-excessivas.pdf